cocaína

EM BUSCA
DO BIG BANG

O QUE É CRACK/COCAÍNA?


A cocaína é um alcalóide encontrado nas folhas do arbusto sul-americano Erythroxylon coca, sendo um poderoso psicoestimulante de reforço. Essa droga induz a uma sensação de alegria em seu usuário ao bloquear a recaptação do neurotransmissor dopamina no mesencéfalo. Além disso, a ativação dos receptores D2 de dopamina provoca a liberação de um peptídeo opióide endógeno que restringe a sensação de recompensa aos receptores opióides mu no núcleo accumbens. Se as previsões do Imperativo Hedonista estiverem corretas, então o milênio futuro testemunhará aquilo que Robert Anton Wilson chamou de “engenharia hedônica”. Os aprimoramentos maduros dos atuais estados de euforia induzidos por drogas serão transformados em uma pressuposição absoluta da existência senciente. Gradientes de felicidade vitalícia serão geneticamente pré-programados, e as “experiências de pico” tornar-se-ão parte da saúde mental cotidiana. Infelizmente, a cocaína oferece apenas um atalho tragicamente ilusório.

Durante o período pré-colombiano as folhas de coca estavam oficialmente reservadas à realeza Inca. Os nativos utilizavam a coca com finalidades místicas, religiosas, sociais, nutricionais e medicinais. Os coqueros exploravam suas propriedades estimulantes para contornar a fadiga e a fome, aumentar a resistência, e proporcionar uma suave sensação de bem-estar. Contudo, a coca foi inicialmente banida pelos espanhóis. Em 1151 o Bispo de Cuzco proibiu o seu uso em situações onde o paciente experienciava dores lancinantes, pois ela era “um agente maligno do demônio”. Por sua vez, o famoso artista católico do século XVI, Don Diego de Robles, afirmou que “a coca é uma planta que o demônio criou visando à eliminação completa dos nativos”. Porém, os colonizadores descobriram que sem a “dádiva dos deuses incas”, os nativos mal eram capazes de trabalhar nos campos – ou nas minas de ouro. Desta forma, a coca acabou sendo cultivada até mesmo pela igreja católica. Suas folhas eram distribuídas três ou quatro vezes ao dia para os trabalhadores em seus brevíssimos momentos de descanso.

Os conquistadores espanhóis regressantes introduziram a coca à Europa. Até mesmo Shakespeare poderia ter fumado – ou inalado a coca. Todavia, a planta de coca é deteriorável e frágil e mesmo apesar disso, foi considerada um “elixir da vida”. Em 1814, um editorial da Gentleman’s Magazine clamou aos pesquisadores que iniciassem experimentos para que a coca pudesse ser utilizada como “um substituto para a alimentação, de forma que as pessoas, vez ou outra, pudessem ficar alguns meses sem comer...”.

O ingrediente ativo da planta de coca foi isolado pela primeira vez pelo químico alemão Friedrich Gaedcke em 1855; ele o nomeou de “Erythroxyline”. Por seu turno, Albert Niemann, detalhou em sua tese de doutorado um processo de purificação aprimorado; ele nomeou o produto final de “cocaína”. O nome pegou. O próprio Sigmund Freud, um entusiasta inicial da mesma, descreveu a cocaína como sendo uma droga mágica. Ele até mesmo escreveu uma canção em sua homenagem; e praticou extensivamente a auto-experimentação. Segundo Sherlock Homes, a cocaína era “tão transcendentalmente estimulante e esclarecedora para a mente que a sua ação secundária era apenas uma questão de momento”. Já Robert Louis Stephenson, escreveu O Médico e o Monstro durante seis dias de consumo contínuo de cocaína. Por sua vez, o intrépido aventureiro polar Ernest Schackleton explorou a Antártida à base de tabletes de Marcha Forçada.

Até mesmos médicos receitavam a cocaína como um antídoto ao vício da morfina. Por outro lado, infelizmente, alguns de seus pacientes criaram o hábito de combinar ambas.

Em pouco tempo a cocaína passou a ser vendida indiscriminadamente. Até meados de 1916, qualquer um poderia comprar no Harrods um kit intitulado “Um presente de boas vindas para os amigos do fronte”, o qual continha cocaína, morfina, seringas e agulhas sobressalentes. A cocaína foi largamente utilizada em tônicos, remédios para dor de dentes e em patentes de medicamentos; em cigarros de coca “perfeitos contra a depressão”; e em barras de chocolate. O Ryno’s HayFever and Catarrh Remedy (“para aqueles momentos em que o seu nariz estiver congestionado, avermelhado e dolorido”), um produto bastante comercializado, consistia de 99,9% de cocaína pura. Os possíveis consumidores eram previamente alertados – nas palavras da companhia farmacêutica Parke-Davis – que a cocaína “era capaz de tornar o medroso em valente, o tímido em eloqüente, e fazer com que aqueles que sofrem tornem-se insensíveis a dor”.

Quando combinado com álcool, o alcalóide da cocaína produz um potente composto de reforço conhecido como cocaetileno. Desta forma, a cocaína tornou-se um ingrediente bastante popular em vinhos, em especial o Vin Mariani. O vinho de coca foi bem recebido por primeiros-ministros, pela realeza e até mesmo pelo Papa. Nesse contexto, o arquiteto Frédérick-Auguste Bartholdi comentou que se tivesse começado a consumir o Vin Mariani mais cedo, provavelmente teria projetado a Estátua da Liberdade com algumas centenas de metros a mais de altura.

A Coca-Cola foi apresentada em 1886 como sendo “um valioso tônico cerebral e uma cura para todas as aflições nervosas”. Ela foi promovida como sendo uma bebida moderada, “oferecendo os benefícios da coca sem os malefícios do álcool”. A nova bebida era revigorante e bastante popular. Até 1903, uma dose comum continha cerca de 60mg de cocaína. Não obstante, a versão vendida atualmente ainda contém um extrato de folhas de coca. A companhia Coca-Cola importa cerca de oito toneladas dessas folhas todos os anos. Elas são utilizadas somente como aromatizante, tendo em vista que os vestígios da droga foram eliminados – embora ainda apresente traços moleculares da cocaína. Todavia, o destino da droga não aproveitada permanece incerto.

Uma folha de coca normalmente contém uma porcentagem de cocaína que varia de 0.1 a 0.9. Se mascada nesse formato, raramente implica em algum tipo de problema social ou médico ao usuário. De fato, mascar coca pode ser terapêutico. Contudo, quando as folhas são trituradas e misturadas, a cocaína pode ser extraída como pasta de coca. Após o solvente orgânico utilizado ter evaporado, a pasta de coca fica de 60 a 80 por cento pura. Ela é comumente exportada em forma de sal, o hidrocloreto de cocaína. Até muito recentemente no ocidente, essa era a espécie de cocaína em pó mais comum. Os testes de drogas para a cocaína tencionam revelar a presença de seu metabólito primário, benzoylecgonina. Este pode ser detectado por até cinco dias em usuários eventuais, ao passo que, através de exame de urina, é possível percebê-lo por até três semanas no caso de usuários crônicos.

Apesar disso tudo, o antiquado hidrocloreto de cocaína não foi o bastante. Os usuários mais temerários, tomados pela sensação de vazio, logo foram em busca do ápice do “rush” definitivo. Eles não estavam satisfeitos com a simples melhora no humor, apetite sexual, autoconfiança, habilidade de conversação, ou mesmo com a percepção intensificada oriundos da inalação de cocaína. Normalmente, apenas através da aplicação via intravenosa poder-se-ia esperar alcançar rapidamente a sensação intensa que almejavam. Ainda assim, nota-se que existem preconceitos culturais muito fortes acerca do uso de drogas recreacionais. Por conta disso, uma versão fumável foi desenvolvida.

Haja visto que o sal de hidrocloreto decompõe-se à temperatura necessária para vaporizá-lo, a cocaína acaba, ao invés disso, sendo convertida a uma forma de base livre. Inicialmente, a cocaína de “base livre” era comumente produzida através da utilização de solventes voláteis, em geral o éter. Há de se ressaltar, contudo, que essa técnica é fisicamente perigosa, pois os solventes tendem a incendiar. Em decorrência disso um método mais conveniente para produzir uma base livre tragável se tornou popular: seu resultado é o crack. Com vistas a obtenção de crack/cocaína, o hidrocloreto de cocaína comum é concentrado através do aquecimento da droga em uma solução de bicarbonato de sódio até que a água evapore. Esse tipo de base de cocaína produz um estalido quando aquecido; por isso o nome “crack”. Essa base de cocaína vaporiza a baixas temperaturas, o que permite com que seja facilmente tragada por meio de um cachimbo.

O crack/cocaína gera um prazer que está muito além do âmbito normal das experiências humanas. Ele é capaz de oferecer os estados de consciência mais maravilhosos, bem como uma intensa sensação de vivacidade, da qual o utente jamais poderia desfrutar. O usuário estará apto a alcançar elevados estados de ser, cujos modos são desconhecidos dos seus “contemporâneos quimicamente simplórios”. Na tentativa de encontrar a terminologia adequada, os consumidores de crack às vezes descrevem esse “rush” como uma espécie de “orgasmo de corpo inteiro”. Por sua vez, usuários iniciantes – ainda que já se encontrem parcialmente alterados – podem não estar tão certos (a menos que estejam de acordo com as mal concebidas teorias do behaviorismo lógico acerca do sentido) de terem descoberto o real significado dessa expressão. Para tanto, necessitariam consumir a droga através de seu característico mecanismo de aplicação, o que seria, no mínimo, imprudente.

Por fim, o patamar emocional e o análogo afetivo do Zero Absoluto, característicos da pós-humanidade em seus modos de consciência hedonicamente aprimorados, podem vir a ser muito maiores do que qualquer outra coisa que temos alcance atualmente. Podem até mesmo ser maiores do que os arrebatamentos entusiásticos dos períodos mais intensos de consumo de alucinógenos da história paleo-humana. Contudo, pontua-se que uma droga capaz de induzir uma paródia secular do paraíso geralmente conduz o usuário a um correlativo biológico do inferno.

Qual é a melhor hora para consumir crack/cocaína?

Como regra de ouro, pode-se afirmar que é imensamente imprudente consumir crack/cocaína. O cérebro acaba por desenvolver um verdadeiro conjunto vicioso de mecanismos de feedback negativo, cujo efeito funcional é nos impedir de sermos realmente felizes por muito tempo. Nesse contexto, poder-se-ia dizer que a natureza é cruelmente parcimoniosa com o prazer. Da breve euforia inicial oriunda de um reforçador singularmente poderoso como o crack suceder-se-á um “choque”. O que inclui ansiedade, anedonia, depressão, irritabilidade, fadiga extrema e possivelmente paranóia. Nesse sentido, a saúde física do usuário pode deteriorar – de tal forma que uma ânsia por mais cocaína desenvolve-se. No caso de heavy users, podem originar-se padrões de comportamento estereotipados, compulsivos e repetitivos. Desta forma, é possível ocorrer alucinações táteis de, por exemplo, insetos rastejando sob a pele (“formigamento”). Ademais, condições severas de depressão podem se seguir; delírio agitado; bem como uma síndrome usualmente chamada de psicose tóxica. As sequelas neurológicas do uso crônico de cocaína incluem alterações nos metabólitos da monoamina e transportadores uptake. Ocorre também a regulação para baixo dos receptores D2 de dopamina com vistas a compensar a sua superestimulação induzida pelo uso da droga. Assim, a capacidade cerebral de experienciar o prazer diminui.

As consequências sociais do uso indiscriminado de cocaína podem ser igualmente desagradáveis, tendo em vista que os usuários não recreacionais frequentemente acabam se afastando da sua família e amigos. Além de ficarem cada vez mais isolados e desconfiados, eles utilizam a maior parte de seu dinheiro e de seu tempo pensando em como adquirir mais droga. Desta forma, sua compulsão pode se tornar uma obsessão extrema. Nesse contexto, poder-se-ia afirmar que a ilusão do livre arbítrio desvanece. Ademais, durante uma “missão”, isto é, basicamente três ou quatro dias de consumo contínuo de crack, os usuários chegam a fumar cerca de 50 pedras por dia. Por conseguinte, para obter mais droga, os dependentes geralmente irão mentir, enganar, roubar e cometer todo o tipo de crime violento. Assim, parceiros conjugais e filhos também podem ser insensivelmente deixados de lado. De fato, até mesmo comunidades inteiras são passíveis de serem desfeitas devido ao abuso de crack. Enquanto que “empatógenos” como o MDMA/Ecstasy – os quais disparam a liberação de mais serotonina do que dopamina – normalmente estimularão a empatia, a confiança, o amor compassivo e a sociabilidade; drogas “dopaminérgicas” como a cocaína ou anfetaminas, se consumidas de maneira independente e em excesso, poderão facilmente causar o efeito contrário. Nesse sentido, tal história possui complicações, pois a afinidade da cocaína pelo transportador de serotonina é maior do que pelo transportador de dopamina. Porém, de maneira mais simplista, poder-se-ia dizer que a cocaína tende a ser uma droga “egoísta”.

Há, entretanto, um único momento vaticinável da vida em que consumir crack/cocaína seria não somente sensato ou inofensivo, como também emocional e intelectualmente reconfortante. Deveras, em tal ocasião isso realmente poderia ser recomendado. Nesse contexto, salienta-se que alguns médicos britânicos respeitados tinham o hábito de administrar um elixir conhecido como “Brompton cocktail” em seus pacientes afetados por cânceres terminais. Era um preparado de cocaína, heroína e álcool judiciosamente misturados, cujos resultados gratificantes iam além do beneficiário. Ou seja, os familiares do paciente acometido também seriam agraciados com o aspecto da recém descoberta paz espiritual e da felicidade, a qual encobriria por completo as feições de seu ente querido, enquanto ele aprontar-se-ia para encontrar o seu Criador.

Assim, conduzir a vida até uma explosão transcendentalmente orgástica, e não a um mero gemido patético esquecido, poderia transformar a morte no ápice da existência, em vez de seu atual anticlímax confuso e demorado.

Ademais, existe outro bom motivo para encerrar a vida em alta: adotar um “estilo de morte” hedonista em uma sociedade predominantemente secular está muito mais de acordo com uma perspectiva moral utilitarista. Em função disso, comprometer-se-ia a salvaguardar amigos e familiares das tristezas e angústias do sofrimento vicário, haja visto que podem ser sentidas no momento em que se testemunha o enfraquecimento de alguém.

Por fim, em algumas gerações, a eliminação dos primitivos remanescentes evolutivos, tais como o processo de envelhecimento e a capacidade de sofrer, fará com que a morte hedonista defendida aqui se torne redundante. Nesse meio tempo, qualquer um capaz de conceber o prazer poderia sensatamente esperar concluir sua existência desfrutando dele.


Original Title: In search of the Big Bang: What is Crack Cocaine?
Author: David Pearce (1998, 2011)
Translated by: Gabriel Garmendia da Trindade (2011) see too 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8 & 9.
Technical Review by: Lauren de Lacerda Nunes (2011)



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